MESA DE BAR[DO] | ENTREVISTA COM AUTOR DO RPG DÉLOYAL (PARTE 1)


Acontece muitas vezes de se conhecer e valorizar somente escritores e designers estrangeiros que atuam principalmente na indústria norte americana de produção e desenvolvimento de jogos de RPG. E esquecemos de valorizar a nossa própria produção nacional e os autores locais. Nesse sentido, gostaríamos de apresentar aos que talvez ainda não o conheçam, Jorge dos Santos Valpaços, da Lampião Game Studio, autor do RPG Nacional Déloyal, que nesse momento está em processo de financiamento coletivo pelo Cartase. Vamos a primeira parte da entrevista.
1- Para o público que passou a conhecer e admirar o seu trabalho, mas que ainda não te conhece pessoalmente, quem seria o Jorge Valpaços?

Eu sou um amante de jogos de RPG e demais jogos narrativos. Mas sou uma pessoa bem-humorada (com um humor meio bobo por vezes) e que gosta muito de ouvir, apesar de falar como uma matraca, você verá isso nesta entrevista, rs.
Sou um professor de história da rede pública do Rio de Janeiro que acredita que o mundo mais lúdico seria mais terno e criativo. E por acreditar nisso, pesquisa, age no mundo e se diverte lecionando e jogando jogos.

2- Como você conheceu o RPG?

Foi algo engraçado. Fui à festa de aniversário de um amigo e os primos mais velhos dele chamaram todos para participar de um jogo doidão (sim, me apresentaram RPG como “jogo doidão”). Eu era um bacuri, não entendi direito o que estava acontecendo (tá bom, ainda sou meio lerdo, rs). Na hora que vi aqueles dados diferentes achei o máximo e, no lugar de achar tudo muito complicado como falam hoje sobre muitos jogos, fui aprendendo a jogar jogando (e acho que esse é o “mistério”, uh…).
No final foi megadivertido ter entrado nessa sem experiência prévia, sem preparação e jogando RPG como um jogo (parece redundante, mas não é). Na verdade, achei que aquela mistura de teatrinho com jogo de dados – minha visão na época – foi uma das coisas mais bacanas que já tinha experimentado. Nunca imaginei ser possível viajar por tantos mundos e criar histórias empolgantes, cheias de riscos e reviravoltas com várias pessoas. Lembro que a irmã de meu amigo jogava muito bem e foi minha primeira inspiração para interpretar. Contamos 2 histórias bem diferentes naquela tarde e noite. Em uma, tivemos de fugir de inimigos bem fortes e sobreviver a várias armadilhas. Na outra, resolvemos um quebra-cabeças que envolvia até o presidente da Argentina (e olha que eu não sacava nada de relações internacionais, me senti o máximo, rs.).
Algum tempo depois descobri que joguei um tal de AD&D em Dragonlance e um tal de GURPS Illuminati no mesmo dia. E olha, foi bem legal. Tão legal que daí pra frente os cadernos de escola nunca foram os mesmos. E acho que desde então já brincava de criar alguns jogos, em face a carestia de recursos da minha infância/adolescência.

3- Quais os seus cenários e sistemas favoritos?

Nossa, aí temos um graaaande salto temporal lá dos idos de… bem, não vou falar a minha idade, mas dá pra ver pelas referências acima que faz um tempinho que comecei a jogar RPG. Olha, muita coisa mudou e tive contato com muitos jogos diferentes. Posso dizer as temáticas que mais curto são as de jogos investigativos e de terror.
Neste sentido, destaco o GUMSHOE como um sistema bastante simples e que deu cria a jogos que considero excelentes, como Rastro de Cthulhu (publicado no Brasil pela editora Retropunk), The Esoterrorists, Night's Black Agents, Mutant City Blues e Fear Itself (que é meu jogo favorito da linha).
Saindo da questão investigativa e abraçando o terror, não posso deixar de destacar A Fita (Diego Austaurete), Terra Devastada e Abismo Infinito (ambos de John Bogéa). Todos estes são jogos nacionais incríveis que tratam o medo de formas criativas, interessantes e profundamente elegantes.
Mas, ao mergulhar no terror, há 2 jogos da editora espanhola Nosolorol que são incríveis e que possuem uma grande profundidade ao tratar o medo. Cultos Inomináveis e Fragmentos são jogos recomendadíssimos para quem curte jogos de horror.
Nossa, sei que a resposta está um tanto grande demais, mas eu não posso deixar de falar do quesito sistema, já que o GUMSHOE responde bem à questão investigativa – que eu curto – bem como os outros jogos listados são excelentes jogos para pensar o terror.
Um sistema que eu destaco – e já que o objetivo é também divulgar o desenvolvimento de jogos nacionais – é o Lost Dice, que dá vida ao UED (Fabiano Saccol e Julio Matos, publicado pela UNZA), um RPG nacional muito bacana que tem um sistema simples e bastante interessante ao tratar os dados enquanto recursos. E olha, eu gosto demais de mecânicas de gerenciamento de recursos e apostas para jogos narrativos.
Mas sistema que realmente me ganha e que é o meu preferido – não, não é do L’Aventure, o sistema do Déloyal ^_^  – é o Este Corpo Mortal (publicado pela Retropunk no Brasil). Nossa, esse jogo é simplesmente incrível para mim. Ele possui uma simples, porém eficiente mecânica de resolução de conflitos baseada em apostas e gerenciamento de recursos que faz com que a sua interpretação se encaixe em uma abordagem estratégica ao jogar, com alta intervenção narrativa por todos jogadores. Bem, ficaria horas falando aqui de ECM, mas acho que não é o caso, rs.

4- A partir de que momento você percebeu que o seu hobby de final de semana, deixou de ser somente uma diversão e passou a se relacionar com uma possibilidade real de trabalho?

Ah, não é exatamente isso, aliás, não delimito muito bem fronteiras entre o hobby e o trabalho, e trabalho no final de semana ou lazer no meio de semana. Talvez isso ocorra porque sou professor e professores trabalham nos finais de semana planejando, corrigindo provas, etc. Ok, é uma brincadeira, mas com um grande fundo de verdade.
Então, a produção de jogos é um campo aberto, e o mercado independente tem crescido bastante nos últimos anos. 2011 foi fundamental com o financiamento coletivo de Violentina (Eduardo Caetano, Secular), praticamente marcando um processo de fomento da comunidade produtora de jogos que se iniciou em 2007-2008, mas que na verdade sempre esteve fervilhando com as adaptações, jogos independentes, hacks, etc.
Publicar RPGs ainda é algo – felizmente – próximo ao hobby em si. Eu me considero não um “grande ou reconhecido” criador de jogos. Sou mais um admirador dessa galera toda que faz coisas incríveis viu. Já joguei e jogo o jogo de todo mundo que citei e nem cabe na lista apresentar todo mundo que está nesse rolé. De fato, entrar efetivamente no mercado e publicar jogos tem a ver com o Lampião. Acho que sem o Lampião eu ficaria ali, publicando meus jogos em pdf, trocando com um grupo pequeno de pessoas, imprimindo de forma amadora e fazendo circular.
Mas foi quando o Rafão Araujo e o Jefferson Neves chegaram pra mim e falaram: “ou trabalha com a gente ou morre”, que as coisas mudaram, XD. Brincando, gente. Mas foi o Lampião que me fez avaliar as possibilidades, entrar nessa de forma efetivamente profissional, com projetos, prazos, análise de jogos, etc. É claro que tenho um compromisso pessoal: manter a publicação de jogos gratuitos – o que o Lampião faz e é um dos compromissos da equipe –, mas realmente se não fosse pelo contato com esses dois doidões que tanto amo, seria difícil entrar nessa, bem como sem a inspiração e as dicas e orientações de toda a galera, das minas e manos que até hoje me incentivam, fazem críticas construtivas e não me deixam perder o rumo. E sim, aqui não posso deixar de falar da LaSombra que partilha os (des)caminhos da vida comigo, a Prissilla (momento óin, podem falar, rs.).

5- Qual a história por trás do jogo? Como foi que surgiu a ideia desse RPG que vem dando o que falar nos últimos dias nas redes sociais?

Nosso plano é fomentar uma guerra por meio desse jogo. Há uma mensagem subliminar presente na terceira letra de todas as páginas cuja numeração esteja em números primos que faz com que o leitor sofra uma lavagem cerebral e em poucos meses se torne um títere de nossos desígnios vis. É claro que estou brincando, gente! Não tem nada de guerra estimulada no livro e inclusive há uma sequência de advertências acerca da violência no jogo.
Déloyal foi pensado inicialmente pelo Rafão como um jogo de libertação inspirado em um jogo chamado The Saboteur (Eletronic Arts). Neste jogo, o protagonista é um partisan campeão de corrida que luta contra os nazistas. Quando Rafão me chamou pra conversar sobre a ideia de criar um jogo assim, pensei que a luta pela liberdade é um tema recorrente na história da humanidade, sendo as narrativas normalmente intrépidas ao redor de lutas advindas de grupos menos favorecidos, como cidadãos comuns. Uma vez que os Invasores detém uma força enorme, apenas ações subversivas e ousadas seriam eficientes para derrubar os Pilares da Invasão.
Apesar de a ideia ter saído da ocupação francesa pelos nazistas, Déloyal já foi gerido como um jogo centrado na experiência de luta pela liberdade e não necessariamente atrelado a um cenário, ainda que o mesmo esteja completamente descrito no manual de jogo. Pensamos em invasão alienígena, apocalipse zumbi, invasão de terras de povos originários e o X da questão era: como transformar essa experiência praticamente louca de pegar em armas estando em desvantagem numérica e tecnológica em um jogo que fosse realmente divertido a todos? Déloyal é resposta pra isso.


Para os que ainda não apoiaram o financiamento - Déloyal


Aguardem a segunda parte da entrevista!

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