Conto | Adeus, tio Bob!

Quando menos espero, me pego pensando no dia em que tudo começou, e quando isso acontece, por mais que me esforce, não consigo me lembrar dos detalhes. Muito se perdeu, eu sei. Aconteceu muito mais do que lembro. Talvez seja minha mente querendo me proteger com uma espécie de campo de força à prova de insanidade. Mas sabe, não importa! A primeira lembrança que vem à minha mente ao pensar nisso é o rosto assustado de Amanda, minha filhinha de dez anos, que na época só tinha cinco, ao entrar em casa gritando:

– Papai, papai, o monstro mordeu o Tio Bob!

Amanda sempre teve uma imaginação privilegiada, fértil demais até mesmo para uma criança na sua idade. Tio Bob era o seu ursinho favorito, um brinquedo que possuía desde os dois anos, o último presentinho da megera da minha sogra – que o diabo a tenha –, e, ironicamente, achava que Amanda gostava mais daquele maldito urso que do próprio pai.
Só faltava uns trinta minutos para a final do Super Bowl, e eu não perderia por nada desse mundo. Tinha de ver os caras de New England esmagarem de uma vez por todas aqueles filhos da mãe de New York. Mas sabia que se não fosse procurar o tal monstro, o qual supostamente devorara o querido Tio Bob, veria o jogo soterrado pelos choros e queixas de Amanda.

Tentei de tudo para acalmá-la, ofereci até mesmo os doces de meu estoque particular de guloseimas, e falhei horrivelmente. Também não adiantou prometer-lhe comprar um urso novo, maior e mais bonito; nada adiantava, ela só se importava com o Tio Bob.
– Ok, meu amor, o papai vai lá matar o monstro e trazer o Tio Bob de volta, tá? – acho que foi isso o que disse.

Muito preguiçoso, me levantei do sofá segurando um saquinho de chips e fui com ela até o quintal. Estávamos sofrendo a maior onda de calor da década. Um calor maldito, que parecia vir diretamente do inferno. O céu se mostrava cinzento, repleto de nimbos, como se anunciasse uma chuva que nunca vinha. Saímos pela porta dos fundos, segurava sua mãozinha delicada, caminhamos pelo jardim cheio de folhas secas amareladas à procura do monstro e do Tio Bob.


– Querida, pra onde foi o Tio Bob?

Ela, ainda espantada, me levou até o final do quintal, que dava direto à entrada de uma floresta, a qual à época havia acabado de ser adquirida por uma empresa de imóveis, que a devastaria para dar lugar a um seguro e luxuoso condomínio, o que eu achava que me traria muita felicidade, ao valorizar substancialmente meu próprio imóvel.
Com uma expressão de medo no pequenino e delicado rosto de maçãs rosadas, Amanda apontou para o alto de uma árvore, e disse:

É ali, papai, ali. É ali que o monstro mora!

Eu observei, procurando desprovido de qualquer fé por algum sinal do suposto monstro e do urso, e de imediato não vi nada. Acho que ainda estava preocupado demais com o jogo para prestar atenção aos detalhes. Os detalhes… Se algo que possa lhe dizer é: preste atenção a eles, sim, são importantes. Se pudesse voltar no tempo, teria feito tudo diferente.

É, foi estranho, mas contrariando a realidade construída pelos séculos em que a humanidade dominou esse mundo, Amanda estava certa. Havia alguma coisa ali. Tive certeza quando os galhos da árvore começaram a se mexer e sacudiam tanto que várias folhas caíram sob nossas cabeças. E, logo após a chuva de folhas, veio o Tio Bob! Amanda entrou em desespero! O urso de pelúcia caiu e estava todo mordiscado, ensopado por uma saliva malcheirosa tão terrível que por pouco não pus para fora a cerveja e os chips que tinha acabado de devora Era como se o Tio Bob tivesse sido abocanhado por um cão que o confundiu com um belo pedaço de bife, um cão com um terrível mal hálito.

O jogo já não me preocupava. Principalmente quando comecei a ouvir os rosnados de algum bicho no alto da árvore e descobri quem tinha assassinado daquela maneira o Tio Bob. A coisa tinha seis pernas, disso tenho quase certeza. A pele era muito encarquilhada, oleosa, e possuía um verde que o camuflaria por entre as folhagens se o sol não tivesse deixado tudo amarelo. Nunca havia visto algo parecido com aquela coisa, nem em pesadelos, nem nos filmes de terror mais bizarros. O corpo era minúsculo e ágil como o de um macaco. Mas a face… Jamais me esquecerei daquele rosto horrível… Era como a face de uma pessoa, como o rosto de um ser humano, com olhos, nariz e tudo o mais, exceto por uma boca enorme, repleta de presas, que se abria em um sorriso maquiavélico e assustador… pelas orelhas pontudas e por seus olhos, globos rubros como sangue… Sim… Eu olhei bem para aqueles olhos e viajei mil mundos com isso. Dentro de mim, um instinto antigo disse que estávamos correndo um grande perigo. Meu Deus, aqueles olhos Parecia que de algum modo aqueles olhos vermelhos exigiam o nosso sangue…Éramos seu sacrifício e o meu jardim seu altar hediondo. Sim, ele nos queria…

Amanda gritou! Foi o estopim para que eu corresse até em casa para pegar minha espingarda.

Sem titubear, impulsionado pelo medo e por um instinto de proteção que jamais pensei possuir, agarrei-a nos braços e comecei a correr o máximo que pude por nós dois. A criatura gritou, emitiu um som horrível que parecia um cão sendo atropelado, e depois gargalhou, assustadoramente imitando a voz de minha filha.

Meu Deus, atrás de mim, pude ouvi-lo saltar da árvore e correr em nosso encalço. Era muito rápido… Tão rápido que nem o maior corredor do planeta poderia vencê-lo numa corrida. Vinha até nós como um animal selvagem prestes a alcançar sua presa, me senti num documentário do National Geographic, do lado dos devorados, é claro.

Não olhei para trás, mas eu podia vê-lo se aproximar cada vez mais como se possuísse olhos na nuca. O instinto estranho que aflorara em mim dizia isso. Jamais chegaria a tempo em casa. Ele ia nos alcançar. Foi quando pedi a Deus por proteção, fazendo uma oração que durou apenas alguns milésimos de segundos.

Acho que o Senhor me ouviu…

Subitamente um estrondo ressoou pela vizinhança…

Um tiro… Um único e certeiro tiro…

E ele tinha acertado em cheio a criatura!

Do outro lado do quintal, pude ver meu vizinho, o velho sr. James, com uma expressão assustada no rosto enrugado, todavia conservando aquele eterno ar de xerife aposentado com sua espingarda em mãos.

Bem, como disse, não me lembro de todos os detalhes do que aconteceu naquele dia, a única certeza que tenho é que, até hoje… Eu jamais parei de correr… Jamais, por mais rápidos que eles sejam. Ah, caso queiram saber, o New England Patriots perdeu aquele jogo.


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