REVIEW ATRASADO - ENCURRALADO, 1971


Para inaugurar essa nova coluna dedicada a filmes perdidos nos recônditos do passado, escolhi um filme dirigido pelo diretor Steven Spielberg no começo de sua carreira. Trata-se de Encurralado (Duel, 1971), um longa metragem de puro suspense e ação, que influenciou diversas obras do gênero, de modo que, ao assisti-lo hoje, ficamos com a impressão de estarmos diante de um mosaico de filmes da atualidade envolvendo ação sobre quatro rodas, suspense e uma estrada deserta. No entanto, antes de falar da criatura, vamos falar um pouco de seu criador, ou melhor, de seus criadores, o já citado Spielberg e também do brilhante escritor Richard Matheson.
Spielberg se divertindo nas filmagens de outro de seus clássicos, Tubarão.
Steven Spielberg é, indiscutivelmente, um dos maiores nomes do cinema. Aventura, ação, horror, suspense, drama; ele deixou sua marca em praticamente todos os gêneros e subgêneros explorados pela sétima arte. Afinal, quem nunca assistiu ou ouviu falar de seus clássicos? "Caçadores da Arca Perdida", "E.T.", "Jurassic Park", e temos também "A Cor Púrpura", "A Lista de Schindler", "O Resgate do Soldado Ryan", e não acaba aí, Spielberg é uma potente e talentosa máquina de fazer filmes que fora consagrada pela magnífica fileira de obras que dirigiu em quase meio século de carreira. Temos muito a agradecê-lo, afinal, por nos trazer filmes que de certa forma tão profundos se enraizaram na cultura pop e lhe serviram de alicerce, estabelecendo suas bases, inspirações e referências.
Já Matheson, que nos deixou no ano de 2013 e que adaptou o roteiro com base em seu próprio conto publicado originalmente numa edição da revista Playboy (conto o qual supostamente fora entregue a Spielberg por um de seus colaboradores e que este, ao lê-lo, ficou deslumbrado e decidiu filmá-lo) é sem dúvida alguém proeminente na literatura ficcional, sendo um dos maiores escritores do século XX, com dezenas de obras adaptadas. Algumas delas certamente já você ouviu falar: "Eu sou a Lenda", "O incrível homem que encolheu", "Amor além da vida". Matheson também colaborou em séries famosas, como The Twilight Zone, e estes são apenas alguns dos seus incríveis trabalhos.

O famoso escritor Richard Matheson, falecido em 2013.
Encurralado é assim o fruto da imaginação de Spielberg e Matheson, e fora gravado originalmente para a tevê americana, em incríveis trezes dias, sendo considerado hoje um dos maiores filmes já concebidos originalmente para a televisão. Mais tarde, o filme recebeu uma nova versão dedicada aos cinemas, contendo alguns poucos extras que não foram exibidos na televisão. O duelo de Duel – ou encurralado – tem início quando um pacato homem de meia-idade, Dennis Weaver, está dirigindo por uma estrada semi-deserta pelo sul da Califórnia, quando se depara com um sujo e poluente caminhão-tanque, viajando abaixo do limite de velocidade. Atrasado para uma entrevista (e para resolver alguns problemas em casa), Weaver tenta uma ultrapassagem e tem êxito, mas o caminhão, como uma fera fedendo a óleo diesel, ruge seu motor logo atrás e também o ultrapassa, em notório desafio. Weaver, sem saber lidar muito bem com a situação, decide novamente ultrapassá-lo, iniciando um verdadeiro duelo nas desérticas estradas californianas; a partir de então, o filme é contado através de dois homens – um deles, o condutor do caminhão, como uma entidade –, duas máquinas, gasolina e óleo diesel queimando, e temos a certeza que somente um ou nenhum deles sobreviverá a este tenso conflito.

A trama de Encurralado é muito simples, com mínimos diálogos, e sem nenhum tipo de enrolação. É um thriller absolutamente psicológico, nos deixando no limiar entre o real e o sobrenatural, além de pitadas de insanidade; um filme que poderia ser mudo, pois é capaz de muito expressar através do desenrolar de imagens cheias de ação e adrenalina. É possível sentir toda a maestria de Matheson na condução da destruição da sanidade do protagonista diante de uma situação tão inesperada a qual é submetido, e, é claro, com o auxílio da boa atuação de David Mann, como o protagonista Weaver. A bem delineada moldura de Spielberg também nos deixa presos à tela, pois nos proporciona takes precisos em planos bem elaborados.


De fato, há muito em Encurralado mesmo que não vejamos facilmente, antes de tudo ocorrer, Dennis Weaver é um homem comum, um típico pai de família, o tipo de homem que nunca viveu emoções que fossem além das triviais, como fechar um negócio ou discutir com a esposa. De certa forma, temos muito de Weaver em nós mesmos, e um dos pontos mais fortes de Matheson na literatura se revelava justamente em proporcionar aos seus leitores uma profunda identificação com seus personagens. Se procurarmos, temos muito a ver com Weaver. Somos criados para sermos pacíficos, respeitando as leis e fugindo de problemas. Mas, o que faríamos se estivéssemos em apuros como ele? O que faríamos se estivéssemos enclausurá-los naquela estrada mortal? O ímpeto à luta se faria valer? E o ódio crescente pelo inesperado antagonista que se colocou em nosso destino, queimaria como aquele causticante óleo diesel? E assim, vemos o pacato Weaver ser descontruído, em meio àquela estrada assassina sua sanidade se desintegra, e ele acaba se tornando um verdadeiro duelista, abdicando da racionalidade pela vingança.

Matheson é sutil e extremamente eficiente com as palavras. Enquanto assistirem, reparem nos diálogos do rádio que Weaver ouve antes de encontrar seu nêmesis. Observe, ouça, e depois compare com os detalhes de sua vida que serão revelados logo depois, como no diálogo com sua esposa. Temos muito do personagem em tanta sutileza.
E a ação é fuminante. O filme é tenso. Assustador, até. Por vezes nos sentimos no banco do carona do Plymouth Valiant de Weaver. Estamos ali. Enfrentamos também àquela fera, aquele maldito Peterbilt saído diretamente das profundezas do inferno. E muitas vezes nos questionamos: o que acontece com Weaver naquela estrada é real? Ou Weaver está louco? Mas, logo descobrimos que isso não importa. Porque, num duelo, a sanidade perde seu valor, e só um sentido se faz valer: vencer o oponente, custe o que custar.


Finalmente, Encurralado é um bom filme. Se o dizem por aí está certo, o que falta aos jovens em experiência é compensado pela inerente vivacidade, o que Spielberg tinha de sobra àquela altura. É isso, parecia que nesse longa Spielberg estava demonstrado ao mundo o quão longe chegaria na sétima arte, com uma bem executada ação e efeitos especiais precisos, mesmo que extremamente limitados pelo orçamento, tempo curto de filmagem e também pelas limitações normais à época. A dupla Spielberg e Matheson nos trazem um filme interessante; Encurralado é a obra conjunta de um diretor jovem e absolutamente talentoso e um escritor experiente, é um longa que vale a pena ser assistido e reassistido, quase meio século após ser concebido.









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